1. Neste processo de escolha do próximo Secretário-Geral do PS, apoio Francisco de Assis. Esta opção não resulta de uma decisão súbita. Implicou alguma ponderação e alguma reflexão. Uma das causas dessa minha primeira hesitação está no facto de, no meu espírito, a imagem que tinha de qualquer dos candidatos ser uma imagem positiva. É, aliás, por isso que tenho a convicção de que, seja quem for o vencedor, não teremos pela frente uma liderança desastrosa. E isso é uma circunstância feliz que não devemos menosprezar. Por isso, aquilo que vou escrever a seguir não deve ser divorciado do que acabo de dizer. Qualquer comentário crítico não deve ser tomado como menosprezo ou agressão, mas apenas como o exercício de uma crítica, nesta circunstância, indipensável.
2. O acerto da minha escolha tem vindo a ser confirmado pelo próprio evoluir da campanha. As razões estruturais da minha opção têm vindo a acentuar-se. António José Seguro move-se no tabuleiro clássico da política, um espaço unidimensional onde a linearidade é a regra. Francisco de Assis não menospreza o terreno clássico, mas valoriza a complexidade do real. Valorização que implica uma pluridimensionalidade que obriga a ter simultaneamente em conta vários planos da realidade socio-política. Pluridimensionalidade necessária para se poder compreender a causalidade múltipla, através da qual interagem entre si os vários planos da vida social.
Ora, os vários problemas que afligem hoje Portugal, a Europa e o mundo são complexos, e a sua natureza está permanentemente a ser ocultada por um simplismo redutor que pretende esconder essa sua verdadeira natureza, para tornar assim mais difícil a sua resolução; já que torna assim mais fácil a conservação da sociedade injusta em que vivemos. Paralelamente, os problemas que o PS enfrenta enquanto partido também são complexos, não só porque espelham a nossa sociedade, mas também por força de questões radicadas no PS em si próprio.
E é mais provável que quem pensa a realidade como conjunto complexo e pluridimensional tenha êxito nas iniciativas que lidere, do que quem olha para a política nos termos clássicos, como se ela fosse um tabuleiro único , no âmbito do qual tudo se joga. De facto, os primeiros agem sobre a realidade, os segundos sobre uma simplificação redutora da realidade que verdadeiramente não existe.
3. Os programas dos candidatos merecem ser discutidos, mas não consubstanciam por si sós o sentido de cada uma das candidaturas. Não o vou fazer agora, dado que não os li ainda com a atenção suficiente, para os poder comparar criticamente. Ambos traduzem certamente um esforço para chegarem a um alto patamar de qualidade, procurando aliciar os potenciais votantes, surpreendendo-os sem os chocar, dizendo-lhes tanto quanto possível o que eles querem ouvir, sem que deixem de ser estimulados por uma ou outra proposta potencialmente emblemática.
Mas, por vezes, o sentido mais fundo de uma proposta política revela-se com muito mais clareza através de uma leitura sintomática de pormenores aparentemente irrelevantes do que navegando-se apenas na superfície dos discursos. Seguro, por exemplo, fala-nos de um novo ciclo. Mas o que é um novo ciclo ? Um bordão jornalístico para abrir telejornais? Um carimbo simples mediaticamente eficaz na sugestão de que algo de radicalmente diferente aí vem?
Seja como for, não deixa de ser um conceito neutro, a sugestão de uma novidade difusa de contornos fluidos. E, principalmente, é um conceito que está a ser usado para designar a conjuntura saída das eleições em que o PS perdeu. Assim, pode perguntar-se : a sugestão de um novo ciclo para o PS assume-se como algo integrado no novo ciclo político geral, ou pretende-se como algo de absolutamente distinto apenas inserido na vida do partido? Ou será que, subrepticiamente, se pretende assim sugerir uma demarcação completa quanto ao que foi o PS até agora, dando a entender que se assume uma ruptura total com o período anterior, quanto ao qual se deixa pairar a ideia de que a responsabilidade por tudo o que possa ter havido nele de negativo foi de outros.
Não acredito que esta última hipótese seja a verdadeira. De facto, sei bem quantos e quem foram os que no último Congresso, de um ou de outro modo, se demarcaram expressamente da liderança então plebiscitada, ou não apoiando nenhum candidato, como foi o meu caso expressamente afirmado no Congresso, ou apoiando um dos candidatos vencidos. Ora, o certo é que nesse pequeno grupo, lealmente crítico, não estava nem Seguro, nem a esmagadora maioria dos seus apoiantes mais mediáticos ou mais conhecidos. E assim não faria sentido que tantos e tão responsáveis dirigentes socialistas tivessem aderido a uma tal maneira de encarar a ideia de um novo ciclo. Maneira essa que seria afinal uma severa e profunda autocrítica relativamente ao que pensavam há poucos meses atrás.
Em contrapartida, Assis valoriza a força das ideias, transmitindo à sua candidatura essa tonalidade aberta e qualificante de confiar nas ideias como princípio activo da transformação do PS e da sua qualificação, para vir de novo a desempenhar um papel de liderança institucional no nosso país. É uma mensagem, em si própria, incompatível com qualquer encasulamento do partido. Mas é também uma garantia estrutural contra qualquer privilégio das ideias de alguns socialistas que fossem tidas como as únicas aceitáveis, em detrimento de todas as outras que houvesse a tentação de considerar inaceitáveis. A força das ideias só pode ser a garantia de um debate livre, aberto e sistemático. Pensar o passado sem anátemas e pensar o futuro sem receios.
Aliás, aparentemente, há já uma virtuosa sinergia entre as moções das duas candidaturas, uma vez que, decerto tocada pela "força das ideias" da outra moção, a moção que aspira a ser um "novo ciclo" incorpora, como um dos seus objectivos mais mediáticos, a criação de um laboratório de ideias.
4. Também me parece muito relevante que Francisco de Assis tenha resolvido lançar na campanha o tema das eleições primárias, como método para serem escolhidos os candidatos do PS, a todas as eleições institucionalmente relevantes para o Estado democrático. Na verdade, chega assim à ribalta, julgo eu que irreversivelmente, uma questão que há anos vinha amadurecendo, lenta e discretamente, dentro do partido. Desde que em 2002 essa proposta foi pela primeira vez veiculada, explicita e claramente, dentro do PS, que em vários outros países foram adoptados caminhos desse tipo. Hoje, é óbvio que não estamos perante um fenómeno exclusivamente norte-americano, sendo assinalável a diversidade de modelos já experimentada.
Deve, no entanto, sublinhar-se que, para além do imperativo de se alargar a muitos outros campos a renovação do PS, é imprescindível fazer acompanhar a instituição das primárias de dois outros tipos de medidas. Em primeiro lugar, reformar profundamente o modo como decorrem os actos eleitorais dentro do PS, melhorando-se drasticamente a sua democraticidade e a sua transparência. Em segundo lugar, tomar medidas efectivas de prevenção contra qualquer risco de, em qualquer nível da hierarquia partidária, poder ser objectivamente possível qualquer promiscuidade entre a política e os negócios. Na verdade, sem uma radical mudança nestes dois planos, seria uma aventura enveredar pela via das primárias, que se podiam transformar numa verdadeira armadilha. Mas, pergunto eu: Há alguma razão para se ser complacente com quaisquer fraudes dentro das eleições internas no PS ? Há alguma razão para que não se combata sem tergiversações qualquer promiscuidade entre política e negócios dentro do PS ?
É pois bem claro que a questão das primárias não é um artefacto circunstancial para dar cor ao debate. É um ponto crucial da renovação do PS e um factor de enorme importância para o reforço da sua credibilidade. Não estamos assim perante uma razão menor para que se apoie Assis, estando eu até convencido que se Seguro não acabar por concordar sem tergiversações com a necessidade de se enveredar por esse caminho, poderá perder apoios que até agora têm sido atribuídos.
5. Uma breve observação final que transcende as duas candidaturas. Daquilo que até agora me foi dado observar no decurso da campanha, para além do habitual jogo de nomes que apoiam A e B, tenho visto emergir, entre muitos militantes de base que apoiam uma e outra candidatura, um espírito crítico, quanto ao modo como tem funcionado o partido nalguns aspectos, bem como uma vontade firme de mudança que são um bom sinal quanto ao futuro do PS.
Rui Namorado
Texto originalmente publicado em http://ograndezoo.blogspot.com